sábado, 12 de fevereiro de 2011

P62 Agora todo mundo corre

Se um pontapé faz isso, imagine um tiro...
Mais um dia em que vou para a casa da minha mãe, vazia desde sua morte. Tomo conta dela há tempos. Ainda não sei, mas vou chutar um amigo que ainda nem conheço. E há tempos tento controlar os ânimos com os moleques de rua. Mal-educados, relaxados e sujos como os pais, sempre na calçada maquinando o que não presta. Já troquei várias vidraças da janela. O divertimento desses pequenos animais? Chutar uma bola de futebol na janela quando estou longe. Quando chego como em outras vezes já aconteceu e falo com eles, mentem de forma descarada, crentes de que não foram vistos. E além disso, no Brasil, o que pode ser feito com crianças e adolescentes? Nada. O ECA ou a lei do Estatuto da Criança e do Adolescente lhes permite todas as patifarias, crimes e atentados contra as pessoas sempre com a hipocrisia de "proteger os menores" ou como todos sabemos, os famosos "de menor". Mas pelo estado de raiva que me toma conta, já vi que hoje vai ser diferente. Sempre acreditei que ECA está mais para Escola do Crime para Adolescentes isso sim.
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Vindo pela rua vejo de novo os pequenos vagabundos chutando a bola, até que consigo devagar chegar a meio quarteirão de distância quando eles me veem. Os dois maiores já espertos na vagabundagem saem pelo quarteirão acima e largam o menorzinho com a bola enroscada entre a sargeta e uma laje de cimento. O pequeno, já escolado na mentira tenta me dizer que "...está vendo a bola aqui, eu não estava chutando a bola...". Nem eu acreditei que tivesse voz de tenor assim para lhe berrar tão alto todos os palavrões possíveis. Mereceu, pouco me interessa o tamanho ou idade, já é um vagabundo com esse tamanho.
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Pareço agora um covarde. E se eu estivesse de frente com dois marmanjos? Mas continuo subindo a rua. E gritando todos os palavrões e piores adjetivos dirigidos aos dois sem-vergonhas que se encostaram num portão. Os vizinhos começam a sair porta afora para ver o que está acontecendo. Ótimo, é isso mesmo que quero. Dobro a esquina e vejo os dois vagabundos um pouco mais crescidos pondo em prática a primeira tática dos "de menor" malandros: se encostarem no portão de casa e fazerem de conta que não é com eles.

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Ora, parece que não está dando certo, eles olham e o sujeito continua subindo a rua, gritando e o que é pior, está indo para cima deles. O outro menorzinho já foi para sua casa que nem sei onde é. Melhor dizendo, esconderijo. Os "de menor" usam outra tática segura nesses casos e entram portão adentro. Pronto. Verdadeira proteção que nem uma embaixada oferece. Do portão para cá nem a polícia entra, estamos a salvo pensam. Continuo chegando e gritando, vizinhos todos na rua. Já imagino a polícia chegando e me prendendo e estou pouco ligando. Depois volto aqui e jogo um tijolo na casa desse desgraçado. O casal de idosos que me havia dito não ter mais paz com esses moleques me olha com um pequeno sorriso vendo o que vai acontecer. E acontece.
Vendo o portão fechado, dou-lhe um pontapé com toda a raiva que sinto. Ora essa, é assim que os ladrões arrombam casas. O portão que parecia firme se abre e bate de lado. O encaixe da fechadura cai grudado em um pedaço de tijolo e cimento. Os "de menor" me olham de olhos arregalados e entro gritando para eles todos os palavrões que já havia gritado na rua. Os três cachorros, defendendo sua casa avançam e um deles me crava os dentes na perna. Dou-lhe um pontapé e ele sai de lado. Sem saber chutei um amigo, o único sujeito decente daquela casa. Os palavrões continuam. Impublicáveis. Os mais suaves "...filhos de vagabundos...", "...agora todo mundo corre..." e por aí foi enquanto os "de menor" sumiam porta adentro e olha só, aparecem dois marmanjos. Pronto, eu sou menor que eles, é certo, antes da polícia chegar vou levar murros e pontapés e ser jogado na rua, miseravelmente quebrado. Não estou nem aí, depois que tirar a última bandagem volto aqui e cobro geral.
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Como já é habitual nos dias de hoje, os dois fazem parte da medonha figura em que tem se tornado o brasileiro típico. Chinelão, bermuda e um barrigão que completa a aparência de desmazelo e relaxo. A discussão começa, palavras feias de cada lado, mas ora essa, um deles me olha de alto a baixo de cara feia, põe as mãos na cintura e depois vai para dentro da casa. Acho que vai pegar uma arma, dane-se, estou pouco ligando. Continuo discutindo com o outro que também me olha de alto a baixo e me diz uma frase que me deixa desnorteado. Terei invadido a casa errada? Depois de arrebentar seu portão, gritar todos os palavrões a quem julgo seu filho, depois de todas essas cenas quando ele deveria avançar para cima de mim aos murros, ele me diz que:
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- Você não pode invadir o meu quintal e chutar o meu cachorro.
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Deixando claro a ele que estava alí por causa da irresponsabilidade e vagabundagem do seu filho e que as consequências seriam sempre essas se ele aprontasse bagunça novamente, trocamos mais umas palavras nada amigáveis e saio, com ele me dizendo que vai ver isso com o filho dele. Então era filho mesmo, mas ele se mostrou mais preocupado com o cachorro. Que filho mais reles. Seja lá como for, os dois pequenos meliantes já seguem os pais, bermudão e chinelos imundos nos pés. O sujeito que havia entrado na casa sai sem arma nenhuma. Apuro os ouvidos e não escuto a sirene do carro de polícia, então não chamaram ninguém.
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Descendo a rua, me lembro dos botecos onde tipos assim são a presença contínua, habitual, retrato desesperador do povo decaído em que tem se tornado o brasileiro destes dias. Sempre desmazelado e relaxado. Com esse exemplo que tipos de filhos esperam criar? Se é que criam. Os filhos olham para seus pais assim e pensam que se os pais, exemplo maior, andam pelas ruas seminús, incapazes de colocarem sapatos, uma roupa decente, de se mostrarem higiênicos, asseados, então o certo é isso, andar na rua como o papai. Como decaímos com o regime dito de "democracia e cidadania". O negócio é sentar o pé ou bala se for preciso. Desci a rua pensando que se um pontapé faz isso, o que fará um tiro então?

Na rua os vizinhos em praticamente todas as casas, olhando tudo. Acho é pouco, quero mais que o sujeito morra de vergonha. O casal de velhos ainda apreciava a coisa toda. E eu pensava como é que dois sujeitos maiores do que eu não me moeram de pancadas? Eu devia estar mesmo com uma cara de demônio. Sinto a perna doer e aí vejo na perna esquerda o rasgão e percebo uma pequena mancha de sangue. A dentada do cachorro, único amigo e figura decente e aprumada alí naquela casa, que coisa. No calor da situação não nos encontramos de forma amigável. Me viro para pegar a chave e vejo no bolso da perna direita o volume do molho de chaves junto com o aparelho que toca MP3. Só pode ser isso.
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Olho novamente e vejo que o volume no bolso parecia de forma convincente uma pequena pistola automática, as chaves parecendo uma coronha e o tocador de MP3 o cano. Não consigo imaginar outra coisa. Me lembro do outro homem me olhando de alto a baixo e ao invés de avançar para cima de mim, virou-se e entrou na casa. Terá sido por isto? Me lembro da olhada do outro também e a discussão que se seguiu depois e ele preocupado em defender o cachorro.
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Tudo indica que foi isso. Chega um sujeito chutando o portão, gritando coisas horríveis e os dois maiores do que eu saem e ficam só na saída e numa pequena discussão. Olho de novo. Parece mesmo o contorno de uma arma. É isso aí. Você trata certas pessoas com decência e dão risada de você. Dizem para você se danar. Aí você mostra que está disposto a cometer atos de violência extrema e o que fazem? São cuidadosas e dizem que isso não vai acontecer de novo. Sim, a violência funciona.
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Deixo a casa da minha mãe arrumada e sei que infelizmente ainda terei problemas. Não vou viver em guerra com o mundo, mas de vez em quando vou aprontar com ele. Em casa, depois de passar um antibiótico na perna, me ponho a rememorar tudo. Depois durmo o sono dos anjos.
Ainda por cima a justa violência faz bem ao espírito.

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