Texto originalmente postado em 20.09.10 no bilogue Cartas no Dia
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Mas esquecido da cena inicial, que havia visto aos 12 anos num pequeno cinema do interior paulista, é que me dei conta de como o mundo era perfeito. O filme começa com a aproximação de um avião a jato. Enquanto ele se aproxima soltando uma quantidade de fuligem proibida nos dias de hoje, a câmera passa para um plano alto e aí a trilha sonora, lindamente cantada, começa. Aí, de forma inevitável e cativante comecei a relembrar das coisas que vivíamos então, num mundo perfeito. O avião, um Boeing 707, com imensas 4 turbinas, grandes consumidoras de querosene e que na época despejavam toda a poluição possível, fora o rugido também proibido nos dias de hoje, é de uma época em que os combustíveis eram baratos, a poluição de hoje era só um assunto desconhecido, aquecimento global era uma coisa nem sonhada e por um instante todos nós nos sentíamos americanos dentro daquele avião, com todo o luxo possível, não brasileiros comendo pipoca dentro de um cinema.
A trilha sonora no estilo de Ray Conniff, claro era apreciada, se bem que essa trilha é um caso à parte, é linda mesmo de se ouvir abraçado com a mulher amada. Na época, ser elegante e fino e aparentar um certo conhecimento do estilo de vida nas grandes cidades era ter o último disco de Ray Conniff. Quem tinha aparelho de som, coisa rara na época, corria para a discoteca (naquele tempo, discoteca era para vender discos mesmo) A MPB era chata demais por isso só uns 3 ou 4 na cidade ouviam. No caso tínhamos a vitrola monofônica de 78, 45 e 33 rotações por minuto. Bom mesmo era o som estereofônico dos aparelhos High-Fidelity ou os chamados Hi-Fi, que aprendíamos a pronunciar para não dar furo na frente das meninas : rái-fái. De novo, tudo vinha da genialidade dos americanos. E lá íamos nós nos bailinhos de jovens inocentes de tudo, dançando de mãos dadas e corpos separados, sob o olhar vigilante dos pais e mães no que era chamado de "brincadeira dançante". Os carros que víamos no filme, claro, deixavam todos nós nos perguntando que tipo de tesouro a América tinha encontrado afinal? Estávamos acostumados a andar de Volkswagen, o usual da época. Naquele tempo, 4 entre 5 donos de carro tinham um. Ou então o velho Jeep, Rural Willys e coisas assim. Vez por outra, algum parente mais rico de algum conhecido vinha da capital no seu Impala importado, e ficávamos de olho naquela lataria reluzente. Nos filmes da época, quase todos os carros como táxis, viaturas de polícia, carros do vizinho ou do protagonista do filme, eram o lindo e imbatível Ford Galaxie. Por dentro e por fora, nos mostrava o que era ser americano. Luxuoso e bem acabado, uma lataria super reforçada, pára-choques de aço capazes de derrubar um muro e com o consumo em inacreditáveis 3 quilômetros por litro. De gasolina azul, é claro. Mas na época, comprar gasolina era como comprar água mineral hoje.
Terminado o filme, íamos para casa certos de que víviamos no mundo mais perfeito possível. Naquela época, o mundo era dividido somente em bloco capitalista e bloco comunista. Por sorte tínhamos nascido na parte capitalista, ou melhor dizendo, americana. A civilização estava em volta de todos, mesmo que incipiente.
Em casa, antes de dormir, íamos escovar os dentes. E todos nós, com um sabor de vida americana na boca, fazíamos isso usando a pasta dental Kolynos. Ou Colgate. Podia ter coisa mais americana do que essa? Não tínhamos carros de luxo e nem aviões, mas pelo menos a pasta de dentes estava lá. Ou que outra coisa poderia fazer com que nos sentíssemos a um passo de começar a falar inglês no próximo momento, como se de repente nos tornássemos parte da vida que tínhamos visto no filme?
Era um mundo perfeito mesmo.